Folha de S.Paulo – Mario Cesar Carvalho
O tratamento medieval que a Polícia Federal dispensou ao ex-governador Sergio Cabral nesta sexta-feira (19), com algemas nos punhos e correntes nos pés, só
fragiliza a Operação Lava Jato. Porque investigação de qualidade e
polícia de primeira linha não desviam um milímetro da legalidade nem
afrontam a dignidade do preso, prevista na legislação.
O
melhor exemplo desse padrão é a Scotland Yard, a polícia londrina,
considerada uma das mais eficientes do mundo e respeitadora da lei.
Qual é o sentido de colocar correntes nos tornozelos de Cabral? Só pode ser para humilhá-lo, para mostrar que em Curitiba (PR), na terra da Lava Jato, ele não terá as regalias que recebia no Rio de Janeiro, como o home theater que o ex-governador conseguiu contrabandear para dentro do presídio e as comidas que recebia de restaurantes estrelados.
Correntes
nos pés é humilhação porque remete ao passado escravocrata do Brasil,
ao tempo em que capitães do mato desfilavam com negros arrastando
correntes nas ruas do Rio, Salvador e Recife para que eles não ousassem
mais fugir. Era uma lição muito clara: "Veja só o que acontece com quem
desafia os senhores de escravos".
Cabral
pode ser um dos mais corruptos entre os políticos brasileiros. Estão lá
as suas condenações e processos para comprovar essa hipótese: ela ja
foi condenado a 87 anos de prisão em quatro ações penais e responde a
outros 16 processos.
Ao final dos processos, suas penas devem ultrapassar os 300 anos de prisão, apesar de a lei brasileira limitar o tempo máximo de detenção a 30 anos.
Nada
disso justifica as correntes nos pés. Cabral abusou de regalias na
prisão no Rio, mas não se tem notícia de que tenha tentado fugir alguma
vez da prisão.
O
uso de algema tem outra função segundo as regras da polícia brasileira:
serve para proteger o policial de um preso violento, o que não é o caso
de Cabral, e também para evitar que o preso tente se ferir ou se matar.
A
humilhação das correntes nos pés tem um parentesco óbvio com a condução
coercitiva, mecanismo que a Lava Jato usou e abusou até ele ser vetado
em caráter provisório pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal
Federal.
A
condução coercitiva tinha como função espezinhar o investigado, apesar
de os procuradores, a Polícia Federal e até juízes alegarem que era para
evitar que os investigados combinassem versões sobre os fatos
investigados. O problema é que a lei não prevê o uso da condução
coercitiva para esse caso. Ela só é autorizada quando o investigado se
recusa a depor, o que não era o caso na Lava Jato.
O caso das correntes é pior porque não há justificativa alguma para essa medida medieval.
O
uso é tão escandaloso que um grupo de advogados que não atua na defesa
de Cabral se ofereceu aos advogados dele para entrar como uma ação
contra as correntes nos tornozelos.
O
grupo é encabeçado por José Roberto Batochio, ex-presidente da OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil), e Nelio Machado, um dos criminalistas
mais respeitados do Rio de Janeiro.