Rudolfo Lago - Blog Os Divergentes
Alguns
episódios ocorridos nos últimos dias são tão inacreditáveis que passam a
estranha sensação de que o governo Michel Temer resolveu boicotar o
próprio governo Michel Temer. Talvez somente isso explique o
sincericídio do ministro da Justiça, Torquato Jardim, o pedido de
aumento de salário da secretária de Direitos Humanos, Luislinda Valois, e
o lançamento da pré-candidatura à Presidência do ministro da Fazenda,
Henrique Meireles, sem combinar com o chefe.
O
episódio Torquato Jardim já foi bastante explorado. O ministro falou
sobre a situação do crime no Rio de Janeiro como faria um comentarista
de Facebook. Declarou o que todo mundo desconfia e fala nas redes
sociais com descompromisso semelhante: sem apresentar provas e parecendo
se esquecer da sua própria autoridade como o responsável em nível
federal pela segurança pública.
Enquanto
Michel Temer tinha ainda que lidar com toda a bronca e indignação das
autoridades do Rio pelas declarações de Torquato, eis que Luislinda
Valois resolve ir além, apresentando um pedido para que o governo
aceitasse que ela incorpore seu salário de desembargadora aposentada ao
salário de ministro. Assim, ela passaria a ganhar nada menos que R$ 61
mil, deixando de cumprir a regra que determina que nenhum servidor
público ganhe acima do teto salarial, que é o vencimento de ministro do
Supremo Tribunal Federal, de R$ 33,7 mil. Como Luislinda recebe R$ 30
mil como desembargadora aposentada, ganha como ministra mais R$ 3,7 mil,
batendo assim no teto de R$ 33,7 mil.
O
inacreditável foram as alegações da ministra. Segundo ela, precisa
ganhar mais porque tem que gastar muito com roupas e perfumes para se
apresentar como ministra. Na ótica dela, R$ 33,7 mil é pouco dinheiro
para comprar os tais perfumes e as tais roupas de que necessita. Mas ela
resolveu ir além: disse que quase nada recebe como ministra e que isso
se assemelharia a “trabalho escravo”. Luislinda não apenas disse como
escreveu isso no documento em que pede o aumento: “O trabalho executado
sem a correspondente contrapartida, a que se denomina remuneração, sem
sombra de dúvida, se assemelha a trabalho escravo”.
Bem,
R$ 3,7 mil – o que Luislinda ganha como ministra da Justiça –
corresponde a quase quatro salários mínimos. Talvez seja necessário
dizer à ministra que hoje cerca de 23% da população brasileira vive com
menos de um salário mínimo. Quase a metade da população sobrevive com um
salário mínimo. A renda média do brasileiro é de R$ 1,2 mil. Ou seja,
pelo padrão Luislinda, bem mais da metade da população brasileira vive
hoje numa condição que se assemelha a trabalho escravo.
No
momento em que o governo acaba de suavizar as regras de fiscalização do
trabalho escravo para agradar à bancada ruralista e garantir na Câmara a
sobrevivência do presidente Michel Temer, o pedido de Luislinda ou é
totalmente absurdo ou talvez seja parte de um plano de boicote do
próprio governo do qual faz parte.
Eis
que, então, Henrique Meirelles lança-se em entrevista à Revista Veja
candidato à Presidência, sem combinar com Temer. Gerando todos os
prejuízos dos quais já falou por aqui Helena
Chagas. Embaralhou as cartas, coloca-se numa disputa com outros
partidos da base, especialmente o PSDB, num momento em que os tucanos
mais do que nunca vivem seus dilemas costumeiros, coloca-se como senhor
absoluto da política econômica, ignorando nesse quesito o próprio Temer,
etc.
A
ideia lançada aqui de boicote deliberado é, é claro, uma ironia. Mas há
uma realidade por trás dela, que é a percepção da falta de unidade e de
combinação de estratégias que acomete qualquer governo impopular e em
crise. Temer vai caminhando para a eleição do ano que vem numa situação
que lembra a de José Sarney em 1989. Sarney estava tão impopular que,
numa disputa com nada menos que 13 candidatos, nenhum se identificava
como candidato do governo. Sarney não era apoiado por nenhum dos
candidatos nem apoiava ninguém. Esse tipo de situação gera um “salve-se
quem puder”. E quanto a regra vira “salve-se quem puder”, abre-se espaço
para sincerídios como o de Torquato, maluquices como a de Luislinda ou
voluntarismos como o de Meirelles…