Sentença meio destrambelhada de Moro impõe ao TRF-4 a escolha entre o desastre e o desastre
Folha de S. Paulo - Reinaldo Azevedo
Lembram-se
daquela caricatura grotesca de jornalismo que tinha como mantra "Lula
vai ser preso amanhã"? Pois é... Você está preparado, leitor, para o
juiz Sergio Moro ser o caminho mais curto entre o presidiário que não
houve e o Presidente da República a haver? Se acontecer, terão
concorrido para tanto a incompetência do Ministério Público, a tacanhice
missionária de seus próceres e um certo sentido de autossuficiência
divina do juiz.
Pior:
em breve, o Tribunal Regional Federal da Quarta Região se verá na
posição do Asno de Buridan, de que já falei aqui, entre a água e a
alfafa. Se bebe, morre de fome; se come, de sede. Explico. Aos três
desembargadores, caberá uma decisão insólita. Ou confirmam a condenação
do petista e, assim, coonestam uma decisão que o próprio Moro diz não
estar de acordo com a denúncia, ou o absolvem, embora tudo indique que o
tal tríplex seja um subproduto mixo do desassombro com que o
lulopetismo misturou o público e o privado.
Relembro
a questão para quem não está ligando o paradoxo à coisa. Moro aceitou,
em setembro do ano passado, a denúncia contra Lula por corrupção passiva
e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá. Segundo o
Ministério Público, o imóvel era pagamento de propina decorrente de três
contratos que consórcios integrados pela OAS mantinham com a Petrobras.
Assim, restaria aos procuradores a tarefa de apresentar as provas de
que eram os tais contratos a origem daquele bem.
A
condenação veio. Mas as coisas se complicaram. Se o MPF não apresentou
as provas de que o imóvel pertence a Lula, e não as apresentou!,
tampouco conseguiu evidenciar a relação entre aquelas obras em
particular e o dito-cujo. Nota à margem: na esmagadora maioria das
acusações de corrupção passiva feitas pelo sr. Rodrigo Janot, não
aparece a contrapartida oferecida pelo político; o caixa dois vira
sinônimo de propina, o que é cantilena para excitar a indignação de
incautos. Volto a Lula.
O
juiz deixou de lado a denúncia que ele próprio aceitara e condenou o
petista pelo conjunto da obra. Levou em conta, por exemplo, o depoimento
de Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, segundo quem havia uma "conta
corrente" da propina, da qual se deduziu o valor do tríplex. Alguma
evidência de que tal coisa tenha existido? Além da delação, nada!
Mais:
o juiz aceitou como prova de culpa o fato de Lula ter sido o
responsável pela nomeação dos diretores mafiosos que tomaram conta da
Petrobras. Fato. Ocorre que, se aí houve dolo, isso é matéria de outro
processo: a questão está sendo apurada no inquérito-mãe, que corre no
STF. Moro, em suma, criou a versão dissertativa do PowerPoint de Deltan
Dallagnol e sequestrou uma decisão que cabe ao Supremo.
Indagado,
nos embargos de declaração, a respeito da ausência de nexo, na
sentença, entre o apartamento e os contratos, o juiz respondeu de forma
surpreendente e insólita: "Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em
lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos
com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o
ex-presidente". E a acusação feita pelo MPF? Se um juiz acha que um réu
deve ser condenado por algo distinto do que está na denúncia que ele
próprio aceitou, é forçoso que isso seja feito em outro processo.
Sei
que o que vou escrever a seguir não é de fácil compreensão, mas eu
sempre aposto alto no leitor. Para a, vou chamar assim, "civilização
brasileira", é irrelevante saber se Lula vai ou não ser punido. O que
constrói um país, para o bem ou para o mal, são os métodos, os meios,
com que se vai fazer uma coisa ou outra.
A
volta do petista ao poder seria um desastre para o país. Hoje, um de
seus cabos eleitorais involuntários, dadas a sentença e a resposta aos
embargos de declaração, é Moro. Ele empurrou para o TRF-4 uma escolha
sem saída virtuosa: ou confirma uma condenação sem provas e alheia à
denúncia, o que seria um desastre, ou absolve o chefão petista, outro
desastre.
A
Justiça não é um território a ser disputado entre santos e demônios.
Escolham o humano e suas precariedades, meus caros, e vocês encontrarão
tudo, até o divino, como escreveu o imperador Adriano —ao menos aquele
recriado por Marguerite Yourcenar.