A Constituição diz que ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado
Jânio de Freitas – Folha de S.Paulo
As
leis e regulamentos estão impressos e à disposição de todos, mas o que
predomina é a arbitrariedade, a decisão aleatória de um ou de poucos sem
sujeição às leis e aos regulamentos. Essa prática é uma das principais
causas da queda do Judiciário, arrastado por sua mais alta instância,
aos níveis de desprestígio do Congresso e do governo.
A
chegada de Cármen Lúcia à presidência do Supremo Tribunal Federal e do
Conselho Nacional de Justiça gerou a expectativa de um freio na
desordem. Deu o oposto. Com a participação da própria. Por omissão, com
sua indiferença conivente aos hábitos antiéticos de Gilmar Mendes, ou
por atos seus.
Cármen
Lúcia diz agora ser "inadmissível o desacato" ao Judiciário. É
preferível que não haja, mas existe e é reconhecida nos regimes
democráticos uma atitude chamada "desobediência civil". E, sem
desobediência civil, quem mais desacatou o Judiciário e seus regramentos
foi um ministro do Supremo, retendo por ano e meio uma decisão já
aprovada pelos colegas, e tantos feitos mais, inclusive de natureza
política.
Com
a mesma arbitrariedade, a presidente do Supremo fez a afirmação pública
de que agendaria o reexame de prisão possível na segunda instância e
fez a afirmação pública de que não o agendará.
Entre
o dito e o desdito, uma semana. A meio da semana, a condenação de Lula
em segunda instância. Mas não será a decisão entre segunda e terceira
instâncias que dará destino à pretendida candidatura de Lula, ou que
poderia livrá-lo do cerco. A reversão de Cármen Lúcia fica, assim, como
um casuísmo por mera arbitrariedade.
Apologista
da prisão de condenado em segunda instância, o ministro Luís Roberto
Barroso argumenta, com o coro de procuradores da República, que a medida
combaterá a corrupção.
Em
sua teoria, o que motivou a corrupção foi o conhecimento dos corruptos
de que protelariam eventuais processos, com recursos judiciais, até o
distante final da terceira instância. Ninguém apresentou evidência, uma
que fosse, de tal motivação dos corruptos.
Além
disso, se a tramitação dos processos é lerda, sabe-se que a morosidade é
do Ministério Público (procuradores e promotores) e do Judiciário
(segunda instância, não a primeira, e tribunais superiores). Disto há
evidência, e está em levantamento mencionado no Supremo.
Há
mais. Com o atual direito brasileiro, ao corrupto não importa a
instância que dê cadeia: a delação premiada, reduzindo sentença de 40
anos para 2, logo o deixará no gozo livre da fortuna resguardada. Quem
duvide pode informar-se sobre Alberto Youssef, Paulo Roberto Costa,
Otavio Azevedo e os muitos outros premiados.
A
intenção de reexaminar a prisão em segunda instância nasceu no mesmo
Supremo que a introduziu. Sem qualquer relação com Lula ou outro
acusado.
Para
adotá-la, e sobretudo para mantê-la, os ministros deveriam ter tomado a
providência de buscar, no Congresso, a mágica de uma solução para o
item do art. 5º da Constituição que diz: "Ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Se
ainda há recurso à terceira instância, portanto, o trânsito está
incompleto.
Enquanto
for possível ler tal premissa na Constituição, a prisão em segunda
instância foi, é e será uma arbitrariedade inconstitucional do Supremo.
Um desacato de seis ministros à Constituição.