segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

EDITORIAL

O atraso, pelo governo Dilma, dos repasses de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) para os Estados e os municípios, com o objetivo de engordar o superávit primário de 2013, acrescenta traços de insensibilidade moral a uma política fiscal já desacreditada por ter sido vítima de tantas manobras contábeis. Além disso, deixa mais nítida, se isso ainda era necessário, a inconsistência dos resultados das contas públicas no ano passado tão orgulhosamente antecipados pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega.
Do ponto de vista moral, essa foi a mais preocupante artimanha contábil de que o governo do PT lançou mão para - não tendo feito os necessários ajustes nas suas despesas de modo a adequá-las ao comportamento da arrecadação - apresentar um resultado fiscal aparentemente mais do que suficiente para evitar o crescimento da dívida pública. Na área de saúde pública, qualquer atraso - e, neste caso, com evidências de ter sido deliberado - na liberação de recursos já definidos implica riscos à saúde e à vida dos pacientes do sistema. A grande vítima dessa decisão foi a população, mas isso não parece ter sido levado em consideração pelos responsáveis da área financeira do governo Dilma.
O governo, como era previsível, alega que não houve atraso na liberação dos recursos. As estatísticas, no entanto, deixam claro que, em dezembro de 2013, as transferências dos recursos do SUS para os Estados e municípios foram bem menores do que no mesmo mês de anos anteriores. Em dezembro de 2012, por exemplo, o governo federal repassou pelo SUS R$ 8,6 bilhões, valor que, no mês passado, se reduziu a R$ 3,8 bilhões, como mostrou reportagem do Estado (17/1). O fato de o represamento dos recursos no fim do ano passado estar sendo compensado pela liberação mais rápida e mais intensa neste mês não torna a manobra menos condenável.
A prática da chamada "contabilidade criativa", por meio da qual o governo Dilma vem conseguindo alcançar formalmente a meta de superávit primário - necessário para o governo honrar seus compromissos financeiros -, foi intensa na apuração dos resultados fiscais de 2012. Mas, ao longo de 2013, manobras contábeis de grande impacto foram utilizadas com frequência inusitada, corroendo ainda mais a confiabilidade da política fiscal.
A própria meta nominal do superávit primário fixada para 2013 na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) foi reduzida por meio de medidas que, embora legais, comprovaram a rápida deterioração dessa política, como o abatimento, dessa meta, de parte dos investimentos previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos incentivos fiscais concedidos para determinados setores da economia.
Inicialmente, a meta para todo o setor público era de um superávit primário de R$ 156 bilhões em 2013. Com os abatimentos, ela foi rebaixada para R$ 111 bilhões. Desse valor, o governo federal deveria se responsabilizar por R$ 73 bilhões, com o compromisso de cobrir a parte que eventualmente faltasse para o cumprimento da meta dos Estados e municípios. O governo Dilma anunciou, depois, que não se responsabilizaria por cobrir eventuais carências de Estados e municípios.
De acordo com o ministro Guido Mantega, o governo central alcançou um superávit primário de R$ 75 bilhões em 2013, pouco acima da meta. Na decomposição desse resultado, no entanto, constata-se que boa parte decorre de receitas extraordinárias, que não se repetirão. Entre elas estão os pagamentos iniciais dos contribuintes que aderiram às novas regras do Refis (programa de refinanciamento de débitos tributários em condições muito favoráveis aos devedores), que propiciaram a arrecadação de mais de R$ 20 bilhões, e os R$ 15 bilhões de bônus do Campo de Libra, no pré-sal.
Além disso, por atos administrativos que aos poucos vão sendo descobertos, o governo retardou pagamentos ou transferências de recursos, como os do SUS, o que também ajudou a melhorar o superávit primário de 2013. Outras manobras podem ter sido praticadas. Tudo isso reduz o superávit primário real a pouco mais da metade do valor anunciado pelo governo.
(Por Valterlino Pimentel)